Como eu sabia que era hora de ter minha transição capilar?




Nunca me esquecerei de sentar no chão entre as pernas de minha mãe enquanto ela puxava meu cabelo com força. Quando criança, a dor era insuportável, e minha mãe não tinha paciência com as minhas madeixas. Todas as manhãs, ela puxava, escovava e penteava meu crespo volumoso e embaraçado, tentando ao máximo prendê-los em tranças na minha cabeça. Enquanto ela fazia planos para obter meu primeiro relaxante estava no topo de sua lista de afazeres. 

Eu nunca tinha conhecido tranças tão brilhantes e sedosas. O cabelo que crescia no meu couro cabeludo sempre foi caracterizado como “difícil” e “rebelde”, e esse novo cabelo foi reservado para princesas da Disney, estrelas de cinema e as mulheres chiques que eu via na rua. Apreciei como poderia de repente virar e amarrar meu cabelo com facilidade em estilos de revistas, imitando as mulheres que via na tela. 

Cabelo liso parecia um rito de passagem e significava deixar o cabelo natural para trás como uma relíquia da minha infância. Logo me acostumei a ter meu cabelo tratado e alisado profissionalmente. Minha mãe tinha um relaxante. Minhas tias tinham relaxantes. As mães dos meus melhores amigos os tinham. Conforme fui crescendo, a maioria das minhas colegas negras também tinha relaxantes. 

Cabelo relaxado não veio sem sua própria marca de dor, trabalho e limitações.

Mas o cabelo relaxado não veio sem sua própria marca de dor, trabalho e limitações. Eu não podia mais pular na piscina sem me preocupar porque a magia em cima da minha cabeça iria desaparecer, como uma carruagem voltando a ser uma abóbora. E você pode esquecer os desenhos animados das manhãs de sábado - “lavar e alisar” todo fim de semana levava pelo menos duas horas.

Eu também aprendi em primeira mão como falar e defender a mim mesma quando o calor escaldante permeava meu couro cabeludo, agitando minhas mãos freneticamente na cadeira do salão para sinalizar a sensação de queimação, o que normalmente significava que a mistura espumosa estava pronta para ser enxaguada.

No documentário “Good Hair” do Chris Rock, há uma parte em que um cientista mergulha uma lata de Coca-Cola em um copo cheio de relaxante - um creme branco feito de vários compostos químicos, incluindo hidróxido de sódio. Em poucas horas, a lata se desintegra completamente. 

Mas mesmo sabendo dos riscos, o axioma compartilhado pelas mulheres mais velhas ao meu redor repercutiu em minha cabeça: Beleza é dor.

Se podemos nos cortar ao nos depilar e cerrar os punhos para suportar a cera, o que é uma pequena queimadura? 

Por toda a minha adolescência, continuei este ritual. Na escolha, cercada por muitas pessoas brancas com seus cabelos lisos, eu queria o que todos os outros adolescentes do Brasil desejam: se encaixar e ser aceita.

Quando eu tinha uns 16 anos, em meados da década de 2013, milhares de mulheres negras começaram a evitar relaxantes, voltando às suas raízes e documentando o processo no Youtube. Essa recuperação, comumente conhecida como Transição Capilar, forneceu representação e orientação às mulheres negras em uma época em que realmente não existia. 


O movimento da transição capilar forneceu representação e orientação às mulheres negras em uma época onde realmente não havia.

De repente, parecia que as pessoas ao meu redor decidiram que era hora de largar seus fios quimicamente endireitados também. Minha tia começou a usar um corte de cabelo curto e natural, e minha amiga de infância exibia uma cabeça cheia de cachos abundantes. Fiquei surpresa ao vê-las dar aquele salto, mas ansiosa com a pressão social para fazer o mesmo.


Naquela época era difícil encontrar uma representatividade do meu crespo 4b, eu ainda temia por não conhecer o meu cabelo e saber como ele ficaria nesse período de transição, além do famoso e temido BigChop que assombrava literalmente a minha cabeça, as inseguranças eram muitas.

Pesquisei muito desde então, tentei conhecer e entender à fundo a minha beleza natural e criar essa mentalidade de aceitação. Pois sabia que não seria fácil lidar com a pressão social.

Depois de muito tempo vendo vídeos e histórias de outras mulheres negras muito parecidas com a minha, eu estava farta das restrições que vinham com o cabelo relaxado, restrições que suportei por quase duas décadas. E quando essa percepção ficou mais forte dentro de mim, resolvi embarcar em uma nova jornada com meu cabelo.

Desde então, voltei-me para produtos de beleza naturais, guias e tutoriais - muitos como resultado da ascensão do movimento da transição capilar- para aprender como cuidar do meu cabelo natural e criar meus próprios estilos. Com a ajuda do Youtube e de vários Blogs, descobri como colocar tranças de kanekalon e até nadei no mar algumas vezes depois que fiz.

A primeira vez que vi meu cabelo natural, sem química, todo crespo e com cachinhos, eu chorei feito um bebê na frente do espelho, eu me enxerguei, me conheci e me amei no meu estado natural.

Quando chove lá fora, não preciso mais entrar em pânico sobre como meu cabelo ficará depois que secar. 

Eu não tinha mais medo. Tenho prazer em passar os dedos pelo meu cabelo, descobrindo como é minha textura natural. Enquanto deixava de alisar o cabelo por motivos de saúde e aceitação, não sabia a extensão da liberdade que me esperava do outro lado. 

Ao deixar meu cabelo natural, eu voltei a mim mesma mais uma vez - e é uma sensação linda e libertadora, depois de tanto tempo presa na pressão social e nas questões raciais quem englobam esse universo "liso".

Poder me reconhecer novamente foi esplêndido! Eu não precisava mais ficar presa a chapinha, secadores e química, exaltar a minha beleza natural me fez entender a ancestralidade que trago nas minhas madeixas, a história que foi apagada e esquecida por conta de uma escravidão forçada.

Te convido a pensar o porque você começou a sua transição capilar, e queria saber... O que mais mudou em você além do seu cabelo?


Com carinho, Gabi.

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